Conheça as diferenças e pontos em comum no desenvolvimento das cervejas artesanais e do vinho no Brasil.
O país do futebol, do samba e da cerveja tem vivido a cada ano uma transformação em seus hábitos de consumo.
De acordo com pesquisa da Horus, empresa de inteligência de mercado que traça tendências a partir de notas fiscais emitidas pelo varejo, a participação do vinho na cesta de compras do brasileiro aumentou cerca de 50% em 2021, enquanto que a da cerveja teve uma retração de aproximadamente 11 pontos. De acordo com o estudo, a presença do vinho nas compras de bebidas alcoólicas nos supermercados passou de 9,3% para 15% em apenas um ano (leia mais sobre o boom do mercado brasileiro de vinhos).
Nem só de pandemia vive a democratização do mercado
A pandemia certamente é um divisor de águas na expansão do mercado de vinho no Brasil. Mas antes dela, há quase uma década, outra tendência começou a ganhar corpo no país: a das cervejas artesanais. De acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o número de cervejarias artesanais aumentou mais de 90% entre 2015 e 2017. Em 2018, o país contava com 889 cervejarias operantes e cadastradas no órgão. Em 2020, já eram cerca de 1.171 estabelecimentos.
No caso da cerveja, dois fatores possivelmente explicam a demanda crescente dos consumidores por opções artesanais: a busca por produtos de maior valor agregado e menos massificados, e a chegada das cervejas importadas ao país. Interessados em novas experiências, os consumidores buscaram uma cerveja com mais “identidade”, ainda que esta bebida já estivesse inserida na sua cultura e estilo de vida.
É possível então fazer um paralelo e pensar que a característica identitária do vinho poderá ser uma vantagem a partir de agora? Será que é tudo uma questão de popularizar o vinho trazendo a bebida para a realidade dos brasileiros? Esta é a reflexão que trazemos nesta edição do Blog da Winext, traçando uma breve relação entre as duas bebidas.
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Produto
De acordo com especialistas, a semelhança entre o vinho e cerveja artesanal vai além das suas tradições milenares e de estarem entre as bebidas mais consumidas pelos brasileiros.
Dentre eles está Cilene Saorin, que é engenheira de alimentos, mestre cervejeira com graduação na Espanha pela Universidad Politécnica de Madrid, e sommelier de cervejas formada pela Doemens Akademie, na Alemanha. Segundo ela, o vinho e a cerveja estão entre as três bebidas mais antigas da história da humanidade, junto com o hidromel. Por isso, carregam uma importância histórica como as bebidas fermentadas mais consumidas durante todo o desenvolvimento da civilização.
Jessica Marinzeck, gerente comercial do e-commerce Divvino do grupo Angeloni cita também outros pontos em comum:
“Em termos organolépticos, alguns aromas podem ser parecidos entre ambas as bebidas, com estilos mais cítricos (cerveja sour e um pinot grigio), especiados (IPA e gewürztraminer), com aromas de café e chocolate (porter e um primitivo) e mesmo quando falamos de estrutura e presença de acidez, por exemplo.”
Além disso, a cerveja artesanal pode ter tantas nuances de cor, sabor e aroma quanto um bom vinho, sem contar a capacidade sensorial e potencial de guarda. Um exemplo são as produzidas pelo método champenoise e consumidas em taças flûte, como a DeuS, da cervejaria belga Bosteels. Além dessa, cervejas do estilo Gueuze, Gose e outros inúmeros estilos envelhecidos em barris podem chegar a mais de 30 anos de guarda. Entre as diferenças, Cilene destaca a legislação, que no Brasil restringe a comercialização da cerveja por até 12 meses. Por outro lado, ela costuma ganhar pontos na versatilidade de consumo, especialmente quando pensamos em formatos de embalagem.
Posicionamento
A popularização da cerveja se deu especialmente na Antiguidade Clássica, pelo fato de poucos poderem pagar pelo vinho, a bebida de maior prestígio na sociedade da época. Atualmente vemos que o vinho vem “descendo do pedestal”.
Na opinião de Jessica isso se deve a uma união de esforços em diversas frentes, tais como: a maior presença de atendentes de vinhos em supermercados, a chegada do e-commerce, o frete grátis, os novos rótulos, o maior acesso à informação nos pontos de venda e através da promoção regional das associações do setor, além dos influenciadores e das redes sociais.
Na outra ponta, a “gourmetização da cerveja” começou a ser difundida quando o consumidor passou a enxergar na versão artesanal uma forma de apreciar bebidas alcoólicas de maior qualidade. Para Felipe Rabah, sócio da cervejaria Odin, localizada na cidade de Petrópolis/RJ, a imensa variedade de estilos, processos, insumos, históricos e regiões dão origem a uma extensa diversidade de cervejas. Ele acredita que tanto os vinhos como as cervejas artesanais têm o potencial de criar uma identidade única:
“Uma pequena vila, uma micro região, uma fazenda ou até um mosteiro podem ser responsáveis por entregar produtos de qualidade ímpar, com preços diferenciados, com uma história que valoriza o local, a terra, os insumos, os produtores e os processos artesanais.”
Nesse quesito, tanto o vinho como a cerveja artesanal tomam caminhos parecidos em busca de maior autenticidade e de um posicionamento único.
O ponto mais favorável para o mercado cervejeiro, no entanto, pode estar no fato de que a bebida pode ser produzida em qualquer lugar, independente de clima, solo e espaço. Já a vinícola precisa estar mais próxima a um vinhedo, o que influencia na distribuição e no preço do produto. Além disso, o vinho está mais suscetível às variações climáticas, como mencionado nesta edição do blog, sobre a safra de 2021 na Borgonha.
O aumento no custos dos insumos é um ponto em comum que pode impactar o preço e, consequentemente, o valor repassado ao cliente. Para os vinhos, os elementos que mais pesam é a escassez de garrafas e as dificuldades de logística de importação no contexto da pandemia.
No caso das cervejas, Elias Varella, Head Sommelier da importadora Interfood, aponta dois desafios importantes para o setor. Primeiro, não existem tantos distribuidores autorizados que trabalhem com cerveja artesanal, por conta da validade do produto. Isso faz com que muitos importadores e produtores acabem distribuindo com pouca capilaridade pelo país.
Além disso, há a necessidade de uma cadeia logística refrigerada para as cervejas artesanais não pasteurizadas, e o menor tempo de vida útil do produto nas prateleiras. Estes fatores encarecem a operação e diminuem a quantidade de parceiros elegíveis. Alguns produtores exigem que os revendedores mantenham as suas cervejas refrigeradas até a venda, limitando ainda mais os potenciais parceiros no varejo.
Artigos relacionados: Qual o impacto das redes sociais na escolha de vinhos? / Marcas de vinho são construídas no on-trade?
Distribuição
No que diz respeito aos pontos de venda, Elias Varella observa que nos últimos anos o comércio de vinho vem se modernizando, trabalhando com um atendimento mais informal e criando cartas rotativas. Ainda assim, os locais de venda das cervejas artesanais costumam ser mais descontraídos e despojados, sem deixar de oferecer conhecimento técnico aos seus clientes. Na opinião dele, a carta de cervejas é mais dinâmica e a rotação de diferentes rótulos é vista como um diferencial positivo.
No entanto, Elias enxerga oportunidades de sinergia para empresas que distribuem ambos produtos:
“Acredito no potencial da empresa que trabalhar com um portfólio amplo de ambas as categorias ou se focar em um nicho de mercado que consiga atender clientes de um mesmo perfil. Assim, é possível engajar tanto a equipe de vendas como os clientes a trabalharem com as duas bebidas, uma ajudando a outra.”
Por outro lado, tais mudanças geram um ponto de atenção: a “concorrência” entre os produtores e seus parceiros. Especialistas apontam a necessidade de uma boa política comercial para não prejudicar os pontos de venda.
No caso dos vinhos, mesmo que 80% das vendas atuais sejam através do supermercados, a tendência de crescimento das vendas pelo delivery, e-commerce e social commerce têm se destacado nos últimos dois anos e acirrado a concorrência. Aproveitando esta tendência, a empresa EducaVinhos foi fundada em março de 2020 por Diego Bertolini, em plena pandemia. Com a promessa de expandir a cultura do vinho, a escola oferece aos mais de dois mil alunos aulas sobre venda de vinhos nos canais físicos (lojas e adegas), digitais (redes sociais, e-commerces e deliveries) e multicanais. Bertolini entende que a questão da política comercial dos fornecedores é ponto crucial para a sustentabilidade dos negócios.
Promoção
Comunidade também é a palavra de ordem quando pensamos em promoção nos mercados do vinho e da cerveja. Seja no turismo, nas feiras e degustações (virtuais ou presenciais) e até na produção de conteúdo, há uma busca por experiências e por seguir um estilo de vida comunitário, alinhado aos gostos e valores individuais. Estes são fatores cada vez mais relevantes para a estratégia de ambas as bebidas.
Marcas de vinho já estão nascendo no ambiente digital, confrarias por e-commerce não estão mais restritas aos grandes players, e o enoturismo há tempos deixou de precisar de passaporte. Não apenas o Sul do Brasil, como também as demais regiões estão cada vez mais organizadas e estruturadas para promover o melhor de seus destinos.
Neste caso, cervejeiros apaixonados são como os amantes do vinho: ambos buscam novas experiências e usam a comunidade para compartilhar suas vivências e descobertas.
Para Jessica Marinzeck, é importante que o mercado esteja sempre voltado para o cliente:
“Acredito que o importante é tirar o vinho do pedestal e trazer mais para o lifestyle, seja ele qual for – vinho no pagode com churrasco, vinho à beira mar, vinho com jazz, em um jantar romântico, etc.”
Para ela, a pergunta que deveria ser feita pelos profissionais é: o que eu preciso falar para deixar esse vinho mais interessante e despertar a motivação da compra? É sobre a uva? Sobre a região? O produtor? O preço? Segundo ela, o diferencial precisa ir além de “esse vinho é bom”, e se conectar com o cliente naquilo que ele ou ela de fato gosta: “de novo, é sobre o consumidor”, afirma.
Pessoas
E se é tudo sobre ele, o consumidor, o que é que os amantes de vinho e os apreciadores de cerveja têm em comum? Será que possuem diferenças significativas?
De acordo com a pesquisa “Retratos do Consumidor Cervejeiro” realizada em 2020, o comprador é predominantemente do gênero masculino e tem de 26 a 35 anos. Esta mesma pesquisa aponta que 76,9% deles consomem todos os estilos de cerveja e apenas 20% são fiéis somente às versões artesanais. Este consumidor faz a maior parte de suas descobertas cervejeiras pelo Instagram (25%) e através de grupos de WhatsApp (22%), mas costuma fazer suas compras em supermercados e bares especializados quase com a mesma frequência: 26 e 25%, respectivamente. O e-commerce ficou em terceiro lugar, com quase 20% na preferência dos entrevistados.
Ainda, dados da Wine Intelligence mostram que, mesmo entre os consumidores regulares de vinho, a cerveja é mais consumida do que os vinhos brancos; e as artesanais estão a frente dos espumantes e rosés, por exemplo. Olhando sob outra perspectiva, dados da consultoria britânica também mostram que mais de 2/3 dos brasileiros que consomem vinho estão abertos a experimentar novos tipos e estilos da bebida.
Em um panorama geral, destacamos um dado que pode direcionar o olhar de ambos os mercados. De acordo com estudo realizado pelo Itaú BBA , denominada “Millennials – Unravelling the Habits of Generation Y in Brazil”, a geração Y já representa quase 50% da força de trabalho no Brasil, e por serem consumidores menos fiéis às marcas, disputam o mercado das duas bebidas. A pesquisa aponta ainda que este número deve crescer: até 2030, os Millennials podem ocupar 70% dos postos de trabalho no país.
Sendo assim, apesar do crescimento nas vendas de vinhos e espumantes no ano passado, a cerveja ainda pode levar vantagem na percepção de ser uma bebida mais descomplicada, dentro de uma cultura que tende a ser mais festiva e descontraída. Por outro lado, a aproximação do vinho a um estilo de vida mais saudável e sustentável pode agradar cada vez mais a esta geração economicamente ativa.
De acordo com dados do relatório “What Matters to today ‘s Consumer”, produzido pela Capgemini Research Institute, em novembro de 2020, 70% dos consumidores disseram que seriam mais cautelosos com a saúde quando a pandemia terminasse. Na questão sustentabilidade, 63% disseram que esse tópico é fundamental ao decidir qual varejista comprar. Em 2021, esses números se mostraram praticamente estáveis com 69% e 60%, respectivamente. O relatório também mostra que a busca por experiência é escolha de 60% dos entrevistados, o que faz com que haja uma tendência dessa geração a comprar diretamente com as marcas com as quais se identificam.
O caminho do meio
Para Cilene Saorin, que prefere trocar a palavra “gourmetização” por “sofisticação”, o importante dentro do mercado cervejeiro é focar na educação sobre a cultura da bebida, em que o foco é democratizar o entendimento das suas complexidades e capacidades gastronômicas. Desta forma, o público poderá cada vez mais entender as suas oportunidades de consumo, como o prazer em sentir os aromas, em boca e pelas harmonizações, da mesma forma que acontece com os vinhos.
Para a especialista, este processo de educação e sofisticação do consumo das cervejas é muito do que os profissionais de vinho fizeram ao longo dos últimos dois séculos. Ainda que, na opinião dela, possam ter “exagerado” em alguns momentos, elitizando demais a bebida e a tornando-a "inalcançável" para muitas pessoas, com seus inúmeros rituais e teorias.
O que se faz hoje é o que ela considera o ideal. Tanto o vinho como a cerveja são bebidas históricas, com grande apelo sensorial gastronômico e, portanto, poderiam trabalhar o “caminho do meio”, para alcançar a todas as pessoas, indistintamente.
Sobre a autora: Tatiana Magalhães é hoteleira de profissão, produtora de conteúdo e copywriter nas áreas de comportamento, experiência do cliente e Alimentos e Bebidas. Estuda vinhos e possui certificação WSET2.
Foto de capa: Ivan Bandura on Unsplash