Um mês depois da tragédia climática, quais os cenários para os produtores de vinho da Serra Gaúcha?

As chuvas intensas do início de maio chegaram em um péssimo momento para as vinícolas gaúchas. Os dados do primeiro trimestre, recém-publicados, mostravam a queda nas vendas, impulsionados pelos vinhos de mesa, de mais de 7% em relação a igual período de 2023. Nos vinhos finos e espumantes, o resultado foi um pouco melhor: aumento de 6% em relação a igual trimestre do ano passado, pelos dados da consultoria Ideal BI.

O que aconteceu a partir dos primeiros dias de maio, além de ficar na lembrança triste de todos os brasileiros, mudou todos os planos. A chuva torrencial destruiu vinhedos – a estimativa está em uma perda de cerca de 500 hectares de vinhas, dos mais de 35 mil hectares da região – e estradas, comprometeu pontes, fechou aeroportos ainda sem previsão de reabertura e, consequência óbvia, acabou com o turismo. “Abrimos o restaurante há duas semanas e recebemos 2 clientes por dia”, conta Bruna Cristofoli, da pequena vinícola que leva o sobrenome da família em Faria Lemos.

De uma chuva para outra, o turista desapareceu e criou um problemão para os produtores: como desovar os seus vinhos? Realidade não muito diferente dos primeiros meses da pandemia, quando o setor precisou se organizar rapidamente para vender on-line. Conseguiu, na época, espalhar os seus vinhos para os quatro cantos do Brasil. O problema é que, com a volta à normalidade, deixou de dar tanto espaço para estes canais de distribuição, pelos mais diversos motivos.

Desta vez, o Estado responsável por 85% da produção de vinhos brasileiros conta com a solidariedade e com campanhas como a #comprevinhogaucho para segurar a viabilidade econômica de suas vinícolas. Mas será que isso é suficiente? Em 2023, segundo a Ideal, a venda de espumantes, vinho de mesa e vinho fino brasileiros somou 233,7 milhões de litros. No ano anterior, foi de 237,5 milhões de litros.

Frente a esta nova realidade, cujas consequências permanecem difíceis de mensurar mesmo um mês após o início das enchentes, o blog da Winext traz uma análise do cenário e aponta possíveis caminhos para as vinícolas gaúchas.

# Apostar todas as fichas em um único canal de venda, o enoturismo, se mostrou arriscado

O enoturismo na própria Serra Gaúcha e a venda de vinhos para a região metropolitana de Porto Alegre são os principais canais de venda para a grande maioria das vinícolas do Rio Grande do Sul. Do total de vinhos comercializados no Brasil, o estado gaúcho é responsável por 12% das vendas. Não é pouca coisa. São Paulo lidera com 33% de participação. E, de acordo com a Secretaria do Turismo de Bento Gonçalves, cidade que é a porta de entrada para as vinícolas da Serra Gaúcha, mais de 1,6 milhão de turistas visitaram a região no ano passado.

Cerca de 80% das vinícolas gaúchas dependem do enoturismo.
— Daniel Panizzi, presidente da Uvibra

Mas a tragédia climática bateu de frente nestes dois canais. “Cerca de 80% das vinícolas gaúchas dependem do enoturismo”, calcula Daniel Panizzi, presidente da União Brasileira de Vitivinicultura, a Uvibra, e também diretor da vinícola Don Giovanni. O consultor Diego Bertolini acrescenta: “o enoturismo é tentador, em algumas vinícolas o lucro com essa venda é de 50%, 70%.” Isso sem contar com toda a fidelização do consumidor que a atividade gera. Após uma experiência prazerosa, ele se torna um cliente fiel.

A aposta, agora, é que campanhas como a do #comprevinhogaucho ajude o setor enquanto o turista não volta. “Sabemos que é difícil o turista vir, mas os gaúchos estão prontos para recebê-los”, afirma Panizzi. A Pizzato, por exemplo, recebeu 5 mil pessoas em maio de 2023, mas nas contas do enólogo Flavio Pizzato não chegou a ter 20 visitantes no mesmo mês desse ano. Exemplos são semelhantes em todas as vinícolas da região. Não é por acaso que vem crescendo campanhas como a do Hotel Spa do Vinho, um dos mais glamorosos da região, no coração do Vale dos Vinhedos. No “Abrace o Vale”, o turista adquire vouchers de hospedagem, com descontos de até 70% no valor da diária, e que podem ser resgatados em períodos de até um ano.

A relação com o mercado tem de ser constante e contínua, com os altos e baixos que envolvem todas as relações comerciais.
— Diego Bertolini, Venda Mais Vinho

A questão é que os produtores gaúchos focaram principalmente neste canal de venda, esquecendo da regra básica do investimento de não colocar todos os ovos na mesma cesta. Hoje sócio da vinícola Manus, que em Encruzilhada do Sul (RS), não foi afetada pelas águas e da consultoria Venda Mais Vinho, Bertolini diz que novamente o produtor colocou todas as fichas na venda direta, esquecendo de que em qualquer negócio a diversificação é importantíssima.

Diego Bertolini, empreendedor e fundador da Venda Mais Vinho, enfatiza a importância de diversificar os canais de venda e construir relações comerciais de longo-prazo. (Crédito: divulgação)

Aqui, o consultor critica a posição de muitos de seus pares, que se preocupam mais com a produção, esquecendo que é preciso também pensar na venda desse produto, em uma relação constante e de longo prazo. Ou seja, tem de ser constante e contínua, com os altos e baixos que envolvem todas as relações comerciais.

# Buscar novas rotas ao mercado fora do Rio Grande do Sul

A pequena produtora Bruna Cristofoli lidera o Novos Talentos, um grupo de seis vinícolas que pode indicar um caminho possível para o setor. São todos pequenos e com vinícolas na Serra Gaúcha: Bodega Iribarrem, Cave Antiga, Cristofoli, Garbo, Monte Sant'Anna e Tenuta Foppa & Ambrosi. Depois da pandemia, eles se uniram para se ajudar, em questões como logística para vender fora do Rio Grande do Sul; estoques e parcerias para entrar em cartas de vinho do restaurante. “Temos conseguido colocar nossos vinhos em restaurantes no interior de São Paulo, o que não conseguia sozinha”, conta Bruna.

O modelo de troca de informação, tanto de elaboração de vinhos como de distribuição, poderia ser seguido por outras vinícolas. Há um exemplo com muitos êxitos em Portugal, do chamado Douro Boys, no qual vinícolas concorrentes na região do Douro, divulgavam os seus vinhos de maneira coletiva – até leilão de vinhos, os portugueses fazem. Bruna e demais acompanham esses movimentos e agora uniram os seus esforços na divisão de ideias e também custos. Mas ela acha difícil novos grupos coletivos se formarem agora: “os nossos produtores estão tão estressados com as consequências da chuva que não são capazes de pensar em outras iniciativas”, afirma ela.

Temos conseguido colocar nossos vinhos em restaurantes no interior de São Paulo, o que não conseguia sozinha
— Bruna Cristofoli, Cristofoli Vinhos de Familia

Jones Valduga, superintendente da Famiglia Valduga, calcula que mais de 30% das vendas de todo o grupo, que inclui a vinícola Casa Valduga, e a importadora Domno, se concentram no Estado do Rio Grande do Sul. “Agora é hora de dar apoio aos nossos clientes, da Serra ou de Porto Alegre”, diz ele. Como as águas enfim baixaram, Valduga diz que começou uma campanha para ajudar os restaurantes, principalmente os de Porto Alegre, seja com descontos, campanhas de incentivo de vendas, entre outras. Aqui, é também a solidariedade.

O grupo Novos Talentos do vinho brasileiro, cujo modelo de colaboração em áreas como distribuição e marketing vem ajudando a conquistar novos mercados. (crédito: Rodi Goulart)

Ferramentas como o e-commerce também voltaram a entrar com nova força no radar das vinícolas. Daniel Panizzi, agora com o guarda-chuva da vinícola Don Giovanni, conta que a venda de vinhos on-line deve ganhar novo foco. “Não conseguimos ter um depósito em São Paulo ou no Sudeste, pelos custos, mas certamente vamos investir mais na venda on-line”, conta ele.

Nas entrevistas com as vinícolas, ainda é cedo para pensar em planos de médio prazo. “Pensamos em muitas coisas nos últimos dez, 15 dias. O Brasil é um país continental e ficamos com dez dias de estradas fechadas”, exemplifica Jones Valduga. Mas decisões de mudança de logística, por exemplo, ainda estão no campo das ideias.

Não vamos demitir ninguém, mas as pessoas estão fazendo outras funções na vinícola
— Mario Geisse, Cave Geisse

Para onde esse planejamento vai levar, ainda é cedo para dizer. Mas é certo que haverá pressão para novas medidas do governo. “As ações até agora, de prorrogação do Pis e Cofins são insuficientes para o setor voltar ao mercado com competitividade”, afirma Daniel Panizzi. E ele lembra: “muitas empresas ficaram um mês sem faturar.”

Do lado das vinícolas, há a preocupação em manter os empregos, principalmente com a baixa no enoturismo. “Não vamos demitir ninguém, mas as pessoas estão fazendo outras funções na vinícola”, conta o enólogo chileno Mario Geisse, sobre a gaúcha Cave Geisse. Bertolini conta que medida semelhante foi tomada pela gigante vinícola Jolimont, de Canela. Os funcionários do enoturismo foram deslocados para outras áreas, incluindo o trabalho de telemarketing de divulgar os vinhos e buscar novos clientes.

# A sustentabilidade precisa entrar na pauta de verdade

O enólogo Flavio Pizatto gosta de contar a história da chegada dos alemães ao Vale do Itajaí (SC). Quando os imigrantes chegaram, estranharam porque os indígenas não construíam suas moradias na beira do rio, o que lhes parecia mais prático. Na primeira estação chuvosa, descobriram que tinha uma sabedoria nesta aparente decisão que contraria a lógica de ficar mais perto do rio: as inundações.

Mais de dois séculos depois, esse é um tema que deve entrar na pauta da reconstrução do Estado, mesmo ainda sendo uma discussão muito inicial. Naiana Argenta, da vinícola Valparaíso, conta que mesmo evitando as encostas, os sete hectares de vinhedos foram destruídos pela chuva, perdendo todo o trabalho de regeneração que a família faz no solo. Aqui, a culpa é do vizinho, que não segue os mesmos cuidados. E o morro, com erosão, soterrou a plantação.

A ideia de plantar leguminosas que ajudem a cuidar do solo, ou de recuperar a vegetação, lembrando que o vinhedo é uma monocultura, não parece ser um norte para a maioria dos produtores gaúchos.

Regeneração, como o conceito da vinícola Valparaíso, ainda é raro na região. A ideia de plantar leguminosas que ajudem a cuidar do solo, ou de recuperar a vegetação, lembrando que o vinhedo é uma monocultura, não parece ser um norte para a maioria dos produtores gaúchos. Por enquanto, a discussão passa mais por maneiras de reduzir (não acabar) com o uso de produtos de síntese nos vinhedos, como os pesticidas, fungicidas e herbicidas.

A ideia de plantar leguminosas que ajudem a cuidar do solo, ou de recuperar a vegetação, lembrando que o vinhedo é uma monocultura, não parece ser um norte para a maioria dos produtores. (Crédito: George Rose)

Nas exceções, está o produtor Luís Henrique Zanini, da vinícola Era dos Ventos, também na Serra Gaúcha. Talvez pela sua personalidade de poeta (seus vinhos sempre vêm acompanhados de poesia), ele vem promovendo ações neste sentido em seu vinhedo. Um exemplo é o replantio de araucárias, árvores que cobriam a paisagem local. Parte dessa experiência é relatada no recém-lançado livro “A era dos ventos”, que conta a trajetória do enólogo no mundo dos vinhos.

As marcas dessa tragédia vão ficar para sempre na história dos vinhos gaúchos, mas que fique também as lições que podem ser aprendidas com ela.


Saiba mais:

  • “A Era dos Ventos” de Luiz Henrique Zanini disponível na Amazon

  • "Como evitar um desastre climático - as soluções que temos e as inovações necessárias”de Bill Gates

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Foto de capa: Adrian Chitty The Eye - Finalista Errazuriz Wine Photographer of the Year